Marcel Proust inicia assim a sua obra Sobre a Leitura:
“Talvez não haja dias da nossa infância mais plenamente vividos que aqueles que passámos com um livro preferido” (Proust, 1998, p.21).
É este excerto que apresento normalmente aos meus alunos do Ensino Superior quando iniciamos as aulas de Literatura Inclusiva e Promoção da Leitura ou de Educação Literária. A partir daqui vamos conversando sobre as memórias de cada um, relacionadas com livros. As primeiras remontam à idade do pré-escolar (3-5 anos). É inevitável a ternura na voz ao recordarem os momentos em roda, onde ouviam histórias contadas ou lidas pela educadora. Outros alunos referem as leituras e os contos que saíam pela voz dos mais velhos da família. É, assim, o primeiro contacto com a literatura, cheio de fantasia ou enredos mais próximos da realidade, de lobos maus ou de anjos bons, de tramas que misturam o susto e a sensação de alívio, o medo e a bravura, as lágrimas de emoção e as de alegria. Todas as histórias com as suas personagens reais – educadoras, mães, pais, avós, tias e madrinhas – habitam por instantes a nossa sala de aula.
Depois, avançamos no tempo, chegamos à idade escolar e as memórias começam a desvanecer-se. Quase nenhum dos meus alunos tem muito para contar dos momentos passados com os livros a partir dos 8-10 anos. Aprenderam a ler e a “escola” mandou que lessem os livros que considerava úteis à sua faixa etária. Mas a mesma idade não é condição dos mesmos gostos. As memórias deixam de se fixar nos livros para se fixarem nas tarefas que os professores pediam e que se resumiam à apresentação obrigatória de um livro, tarefa alvo de classificação. Quem não lesse tinha negativa. A leitura começa a assustar, porque pode significar a penalização e a exclusão. Aos poucos, vai-se deixando de ler por prazer na escola. Os livros são impostos e alvo de questionários, à maneira dos exames. Os escritores, por seu lado, vão parodiando esta forma de análise dos seus escritos em múltiplas entrevistas, alertando para que não dissequem o texto literário. Já Almada, num texto em 1932, suplicava “Pelo amor de Deus não me obriguem a explicar nada do que digo” (Negreiros, 1992, p.11).
Pela adolescência, surgem outros interesses e o contacto com os livros vai-se perdendo cada vez mais. O que leva o jovem leitor a ler não é o reconhecimento da importância da leitura, e sim várias motivações e interesses que correspondem à sua personalidade e ao seu desenvolvimento intelectual. É um caminho árduo o que a escola tem de percorrer na promoção da leitura, libertando-se de imposições ministeriais, e centrando-se no interesse dos jovens.
E agora, que relação têm com a leitura? – Pergunto-lhes! Agora é a falta de tempo! Agora é o não saber o que ler. Perdeu-se o contacto com os escritores, as histórias e os livros e não se sabe por onde começar.
Iniciamos, então, um trabalho intenso de contacto com livros diversos, de busca de autores, ilustradores e editoras, de visitas a livrarias e bibliotecas, criamos momentos de leitura silenciosa e de conto de histórias uns aos outros. Este é o primeiro passo: tentamos ressuscitar, por breves momentos, as memórias boas que temos do contacto com os livros.
Porque insistimos tanta na leitura? Para aprendermos mais sobre quem somos. Porque percebemos as suas potencialidades no desenvolvimento de capacidades de comunicação e participação ativa, essencial na construção de um paradigma de solidariedade, cooperação e qualidade de vida. Porque acreditamos que a leitura é um acelerador da inclusão social e da tolerância em sociedades multiculturais.
Com estes pressupostos, unimos a leitura à educação artística e preparamos projetos de intervenção social que visam uma consciencialização local e global sobre preocupações culturais, económicas, ambientais e humanitárias. É assim que os livros ganham vida nas nossas mãos e os levamos a outros.
Que bom seria que em algum momento experienciássemos as sensações descritas por Proust quando, na sua infância, tinha um livro nas mãos.
por Joana Filipe,
Professora assistente convidada do Instituto Politécnico de Leiria e doutoranda em Educação Artística, no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.