Escrever e ler, ou as palavras para existir

Se começar a pensar sobre a leitura, talvez tenha que revisitar toda a minha vida. No entanto, como o tempo e o espaço são escassos, irei mencionar algumas etapas como as mais marcantes de um percurso que, se começou com o ato de ler, mostrou também que muito mais há para encontrar e descobrir. Começarei, então, pelo começo, como as histórias de sempre. Era uma vez...  uma casa sem livros, com gente sem tempo para as palavras, porque o trabalho consumia a maior parte das horas e a escola reduzira-se a uma primária que pouco mais lhes havia dado que um analfabetismo disfarçado. Estamos nos anos 60/70, nos subúrbios de uns subúrbios, que colocavam Lisboa no fim do mundo, de um mundo desconhecido.

Mas, já não sei bem como, descobri que a vida que me permitia passar horas na rua, calcorreando uns montes com moinhos e arbustos, onde se podia fazer piqueniques imaginados e inventar aventuras que nunca aconteciam, podia ser repetida pelas palavras através dos livros. Livros que me fizeram encontrar algumas pessoas (nesse tempo e espaço, poucas, muito poucas) que andavam com eles na carteira ou que os tinham numas prateleiras atrás de uma porta. Foi por essa altura que os livros de Enid Blyton, e logo a seguir os de Agatha Christie, me encontraram. E foi, também, por essa altura, que comecei a juntar algumas moedas e começar o que queria que fosse uma coleção.  Ainda não sabia o que era uma biblioteca, mas tinha a certeza de que iria precisar que esses objetos me conduzissem para outros lugares e tempos outros.

Nessa altura, os livros e a leitura eram uma fuga.  Quantas casas alheias visitei para saber o que as pessoas que as habitavam estavam a ler, como guias invisíveis de um percurso que queria trilhar, mas não sabia como. E não foi a escola daquele tempo que o fez. A escola não mostrava livros, antes excertos que faziam parte de um manual que não dava vida aos autores e às obras. Só assim teria sido possível, com a materialidade desses objetos, construir outros universos e, intrinsecamente, od livros passarem, e facto, a pertencer ao  quotidiano dos dias.  Também nessa altura, o encontro com a biblioteca escolar, ainda com os armários fechados, levou-me a descobrir José Gomes Ferreira e a tentar compreender sentidos outros em obras como As aventuras de João Sem Medo, uma vez que a anterior leitura de livros com títulos semelhantes não ajudava a chegar até lá. Ou era ainda a minha incapacidade enquanto leitora para desses sentidos me conseguir apropriar.

Já adolescente, passava as tardes de umas férias, em Famalicão, com Sartre, folheando A idade da razão.  Embora não compreendesse tudo o que aquele livro me tinha para oferecer, ficava-me o Café de Flore... e Camilo ainda fez com que percorresse alguns quilómetros a pé até à sua casa, em São Miguel de Seide.  Por essa altura, o livro passou a fazer parte da minha indumentária, dentro da mochila ou transportado por um sorriso que tanto me protegia como fazia encontrar outro olhar cujo título ou autor a mim me havia conduzido: Tereza, em A insustentável Leveza do ser, com aquele livro que lhe servia de escudo, de proteção, para os encontros e desencontros.

Mais tarde, maravilhei-me com a literatura do século XIX, porque me desafiei a ler Os Maias nas férias, acabando por desejar ir para a faculdade, principalmente, por querer ler mais, descobrir mais obras e respetivos autores, e ler melhor.

Na universidade, O Gebo e a Sombra e A demanda do Santo Graal trouxeram-me a eterna e absoluta amizade e, com ela, a primeira viagem ao estrangeiro, a Inglaterra. E que outro lugar poderia ser? Um país feito de livrarias com livros em segunda mão, acessíveis à nossa bolsa e que encheram as nossas prateleiras e dias por vir. Não foi por acaso que, num mercado ao ar livre, cada uma encontrou o livro que a outra andava à procura e, naquele mesmo instante, os trocou, com um olhar e sorriso cúmplices. E é por isso que Brideshead revisited e Tender is the night emigraram para Portugal, e carregadas viemos com tantos outros títulos e autores.

A paixão não tardou a acontecer, e com ela a literatura que inquietava e perturbava. A Beat Generation e Kerouac, Pela estrada fora, mas, em especial, Henry Miller, com O tempo dos assassinos e as suas cartas a Anaïs Nin, e também a escrita diabólica de Burroughs, abriram um tempo de liberdade e provocaram um olhar sobre o poder transformador das palavras e as suas possibilidades.

Percorríamos todos os caminhos que podíamos e foi numa viagem até Porto Côvo que me cruzei com Al Berto no mesmo autocarro. O autor estava presente, mas era  O Anjo mudo que passava a acompanhar-me o resto dos dias. Um pequeno livro que quebrava a linha, ela própria ténue, entre prosa e poesia -  poesia que, transversal e essencialmente, já atravessava todos os instantes feitos de leitura,  a poesia de Sophia, de Herberto Hélder, de Pessoa, e de tantos outros poetas.  

As revistas Ler ou Os meus livros, o TLS, ou o New York Review of Books, as secções do The Guardian, o JL ou o suplemento Mil-Folhas, as estantes das Buchholz, a Bertrand do Chiado, as muitas edições da Feiras do Livro de Lisboa... orientavam os passos em volta e faziam aumentar o desejo de mais tempo para ler, que a pilha avolumava-se e as escolhas tornavam-se cada vez mais difíceis.  Livros que temos connosco e que aguardam o dia em que têm de ser abertos. E é por esta altura que sabemos que a nossa breve vida não chegará para todos, porque todos os que mantemos fechados não nos dizem os instantes que já não vamos viver, mas que escritos permanecem. E fica-nos a questão: quem os abrirá e por mim continuará a existir?

E, por isso, quando encontrava alguns livros que não queria que chegassem ao fim, que solução outra que iniciar a leitura de toda a obra desse escritor, como para não quebrar o fio do encantamento, do questionamento, da inquietação e da alegria. Rendi-me primeiro a Virginia Woolf, a Um quarto que seja seu, mas outros foram-se seguindo, como projetos de um ano ou de um tempo mais prolongado.

E outros projetos foram vividos, contrariando o que podia acentuar o lado mais solitário da leitura (apesar das vozes das personagens, do narrador, do autor), através das comunidades de leitores, fossem aquelas em que participei ou as que dinamizei, num ato de partilha, para alargarmos gostos, multiplicarmos desafios, encontrarmos outros pontos de vista, pois os livros também se transformam com a pessoa que os lê.

Entretanto, numa outra altura, o Amor aconteceu, pela mão de Gabriel García Márquez e Cem anos de solidão, quando nos sentámos a beber um chá e nos envolvemos numa conversa, certamente efabulada, levando-me a olhar o mar de uma outra forma e a escutar a música de  As mil e uma noites, no final de cada dia. O desengano não se fez esperar, mas Ariosto e o seu Orlando Furioso, com as suas aventuras e desventuras, nunca abandonou a cabeceira. 

Salvou-me Clarice, com A aprendizagem ou o livro dos prazeres, e todos os que a ela pertencem. Clarice, a escritora que nos silencia e nos obriga a fechar as páginas a cada parágrafo, e cujos livros se transformam numa obsessão e nos empurram para a escrita e a liberdade das palavras, entre o terror, o assombro, o deslumbramento, as trevas e a luz, ou uma aproximação a outra coisa qualquer que ainda não conseguimos criar, que não sabemos, queremos ou conseguimos dizer, mas que está lá e o pressentimos.

E o que viria a descobrir do encontro com outras palavras, modificou o paradigma sobre o qual assentou toda uma parte da minha vida. Ler para escrever melhor, mas, principalmente, escrever e falar, pesquisar para enfrentar a complexidade e o desafio da leitura.

A biblioteca existencial, que construímos com os livros que lemos e possuímos, revela os contornos da nossa autobiografia e desenha muito da nossa identidade, mas estou em crer que é essencialmente a escrita que nos liberta e restitui a voz que precisamos de reconhecer e de assumir. Conseguir, com as palavras, construir um discurso, um pensamento nosso, ancorado nas leituras que fazemos, mas com o desafio de evitar a mera síntese, paráfrase ou reprodução.  No fundo, talvez o que nos deslumbre na leitura não seja mais que a possibilidade de, também nós, nos transformarmos em escritores (mesmo sem a mitificação que vamos criando desta figura) e reviver o processo de trabalho que esse ato criativo envolve. Sempre as palavras e os universos que com elas podemos engendrar, habitando essas reais abstrações. E, ao longo de muitos destes 53 anos, o caminho feito de palavras foi traçado por listas de livros sempre passíveis de serem alteradas, mas também por encontros marcados pelo acaso. Estes últimos, porque nunca previsíveis, são os mais perigosos, mas, com o tempo, sempre sublimes, porque nos deixam as palavras gravadas na pele e com elas vamos tomando forma.

No espelho ou fora dele, entre as páginas de um livro ou só com ele entre mãos, a realidade é feita desta espessura. E, neste movimento de entrada e de saída permanentes, tece-se a vida, como relembra Lewis Carroll, com as palavras que concluem as Aventuras de Alice no País das Maravilhas:

"E Alice levantou-se e foi a correr para casa, mas sempre a pensar como tinha sido maravilhoso o sonho que tivera. No entanto, sabia que teria de voltar a abrir os olhos para regressar à erva sussurrando apenas por causa do vento, às ondas na superfície do lago causadas simplesmente pelo agitar dos juncos, ao tilintar das chávenas transformando-se no chocalhar das campainhas das ovelhas. E sentiria profundamente todas as suas pequenas tristezas, como encontraria prazer em todas as suas pequenas alegrias, vivendo a sua própria vida e os felizes dias de todas as estações."

 

por M. Lopes,

Professora de Português e dinamizadora da Comunidade de Leitores da Biblioteca Municipal da Amadora

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