Aprendi a ler com os bardos, essas bibliotecas itinerantes da oralidade, pela mão da minha avó paterna, ainda os olhos não liam e as palavras eram um carreirinho de formigas mudas e quedas.
Encontrei-me pela primeira vez com a leitura entre lengalengas e ladainhas, fábulas e estórias de encantar e ensinar que na hora de dormir saíam da boca terna da minha avó. Vezes havia que a noite era visitada pelas aventuras e peripécias desses heróis nortenhos que a história não registava.
Para o meu mundo mais íntimo entrou então o Zé do Telhado, envolto em mistério e arrojo, nesse ideal de roubar aos ricos para dar aos pobres. A Maria da Fonte também nos revisitava de quando em vez e outras figuras lendárias que a memória apagou.
Foi com o Zé do Telhado, assim dito pela minha avó, que vivenciei e exercitei a antecipação. De quando em vez a minha avó suspendia a estória, pelos motivos mais diversos, e incitava-me a reconstruir o seu final.
De início esforcei-me para que a memória seguisse fielmente o fio da aventura segundo o contar da Avó, mas cedo descobri o prazer de lhe dar um final diferente com a sensação que desse modo, reescrevendo-a, eu ia construindo o meu Zé do Telhado.
Mas não só ao cair da noite, quando o sono já se anunciava, as palavras vinham até mim. Na comunhão das refeições daquela família alargada acontecia, de quando em vez, sopa de letras, entre a sobremesa feita de fruta do quintal e o café coado.
O encantamento começava no saco de linho, que apertava com um laço feito de tecido brilhante. Bordado a azul nas suas duas faces e bem no centro destacava-se a frase: Jogo das Palavras e no canto inferior direito, que só se deixava ver quando o saco estava completamente aberto, aparecia em letra minúscula: toninho. Tudo naquele saco, e no seu manejo, era ternura, afeto e intimidade.
Dentro dele, escritas em papel de cartolina de várias cores, moravam palavras sem fim mas familiares. De quando em vez lá aparecia uma intrusa, mas que rapidamente se sentia em casa. Ainda sinto o contentamento, como se o revivesse, da construção da minha primeira frase: eu não gosto de tomates. Mas a intensidade maior no sentir aconteceu quando me incitaram a escrever frases que não existiam, sem sentido, irreais, e um dia ela escreveu-se pela minha mão: o meu pai é meu filho. A ambiência de regozijo, sorrisos ternos e palavras de louvor e incitamento desencadeou em mim um sentimento que nunca antes tinha experimentado: subitamente, pela mão daquela frase irreal, senti-me crescer por dentro, agigantei-me, agora sentia-me mais próximo dos adultos, mais igual. Foi este episódio que me empurrou para a aventura da descoberta dos livros da estante da sala para mim qual biblioteca alexandrina.
Lembro-me bem do dia em que me aproximei da estante com os olhos curiosos de um leitor. Era uma daquelas manhãs encantatórias de nevoeiro que entrava pelas portadas da sala. De início divertia-me a ler somente os títulos dos livros colocados na vertical e a hierarquizar as minhas preferências segundo o gosto que o nome da obra me proporcionava. Não demorou muito tempo até que à curiosidade pelo título se juntasse a do nome do autor e a sua bondade ou estranheza. Cedo descobri que havia escritores que só tinham uma obra enquanto outros ocupavam parte significativa de cada uma das prateleiras. Era nestes que os meus olhos de leitor se demoravam e um dia se prenderam naquele duplo tê distintivo, singular e elegante: Garrett.
Sentei-me pela primeira vez no sofá com uma obra literária entre mãos, no convencimento que iria abrir uma janela para o mundo do meu país nas páginas de “Viagens pela minha terra”. Mas nas páginas daquele livro havia mais escuridão que luz, mais desilusão que interesse e motivação que nem Carlos nem Joaninha conseguiam atenuar.
Fui assaltado pelo desânimo e pela desolação, mas também por um estado de confusão e incompreensão. É verdade que muitas daquelas palavras eram mudas porque desconhecidas, mas alturas havia em que eu as lia com tanta fluidez como um livro escolar de leitura. À força de tantas vezes ler as mesmas páginas, acabei mesmo por decorar algumas frases. No entanto, o texto teimava em não falar para mim, conservando-se tão mudo como no tempo em que as letras eram simples formiguinhas no seu carreiro.
Muitos anos mais tarde, e a propósito deste episódio, percebi que um bom descodificador do código escrito, a limite, pode não compreender o que lê. E, por contraponto, que o livro certo na hora certa, pode fazer toda a diferença.
Saí desse estado de desânimo e desalento em relação à leitura embrulhado em papel de jornal. O ritual, sempre repetido, de ler o “Primeiro de Janeiro" pela voz do meu avô, entre a fruta do quintal e o café coado, contribuiu, por um daqueles acasos felizes, para o meu encontro com o “Príncipe Valente”. Foi na solidão e intimidade do quarto-de-banho, naquele fim de tarde invernoso, que eu li e julguei compreender por inteiro um episódio daquela estória aos quadradinhos.
Mas foi pela mão do meu tio materno, naquela quinta que a minha memória, ainda hoje, lembra cantos e recantos, que eu me reconciliei por inteiro com a leitura e entrei, para sempre, nos mundos da literatura. Num dia de primavera soalheira, confessada a minha desilusão com as “Viagens na minha terra", o meu tio estendendo-me um livro que repousava na estante, com uma voz de entusiasmo e um sorriso de ternura, proclamou: este é o teu Garrett e, de súbito, fiquei entre mãos com o inesquecível Jack London.
De Jack London ao “ Pela estrada fora" alguns caminhos de leitura se cruzaram mas depois de Kerouac foi tudo um trilho que, porque o escritor escreve para que seja possível, não mais larguei.
Por António Castro Prole,
Ex-Assessor Ministério da Cultura e Fundação Gulbenkian. Ex-Professor Universitário na Universidade da Extremadura e Almería, Autónoma e Católica de Lisboa